terça-feira, 30 de novembro de 2010

A Guerreira e a Sacerdotisa


                   Naquele dia a batalha fora intensa e durara por horas sem fim.Um pouco afastado do acampamento ainda ardiam as inúmeras piras funerárias. Na tenda hospital, ouvia-se um ou outro gemido de dor de algum ferido debatendo-se em febre. Àquela altura, nada mais podendo fazer por ninguém ali, a sacerdotisa achou que merecia alguns instantes para si mesma. Ao sair da tenda, percebeu que um dos pacientes fora embora sem sua autorização.  Esse paciente era a guerreira que ali chegara no meio da tarde com uma flecha cravada no ombro. Não era um ferimento grave, a flecha atingira apenas músculo, mas sangrara bastante e a sacerdotisa recomendara-lhe que permanecesse repousando pelo menos até a próxima manhã. A guerreira apenas lançara-lhe um olhar de frio desdém. Um olhar com o qual a sacerdotisa já estava habituada, pois era o mesmo sempre que cruzava com ela.
             Uma noite, na estação das chuvas, quando o exército avançava a passo lento pela charneca alagada, a sacerdotisa, cavalgando mais à frente do que de costume, escutara aquela guerreira dizer ao rei que todo aquele que não fosse capaz de pegar em armas, deveria ficar ali mesmo, pois suas presenças apenas atrasavam e dificultavam a marcha e faria com que as provisões já bastante escassas terminassem por se esgotar muito mais rapidamente. A sacerdotisa que só concordara em acompanhar o exército por julgar aquele rei um homem justo e nobre, prendera a respiração esperando pela resposta. E o rei não a desapontou, respondendo que jamais deixaria seus súditos abandonados a propria sorte no meio do frio e da chuva para morrerem de fome. A guerreira não se dera por vencida . Insistia com o rei para que ordenasse então, suas mortes pela espada. Assim não haveria a crueldade do abandono daquela gente. O rei horrorizado pela idéia, mandara a guerreira calar-se. A mulher se afastara com um grunido, cavalgando ereta, orgulhosamente altiva, o manto negro encharcado pela chuva fina e o capuz puxado sobre os olhos que a sacerdotiza sabia serem de um azul acinzentado, frios, inquietantes.
                 A sacerdotisa pensara na ocsasião, que embora o rei fosse um homem justo, cometera um terrível erro ao contratar aquela guerreira e o bando de mercenários que ela chefiava para seu exército. Na tentativa de defender-se das invasões bárbaras e proteger seu povo, o rei fora descuidado na escolha dos soldados.
                E, agora, com esses pensamentos sombrios repetindo-se, a sacerdotiza caminhava rumo à floresta, Por trás das enormes árvores via-se o clarão da lua cheia que logo subiria tornando-se visível. A sacerdotisa continuou sua caminhada. Sentia-se cansada, esgotada, enfraquecida. Precisava revigorar-se, conectar-se com a Deusa Mãe, pois era a ela que servia e era onde buscava alento para suportar a vida dura no exército. Era sua obrigação, como serva da Deusa estar ali, defendendo a terra, seu povo, com todos os conhecimentos que seu sacerdócio lhe dera. E a sacerdotisa não se furtava a essa responsabilidade.
                Sabia que havia um lago logo adiante, e pensando na grande lua que subia e se refletiria brevemente em suas águas, a sacerdotisa sentia-se reconfortada. A Mãe não abandonara sua filha, A lua e a água eram seus símbolos, Ela estaria presente naquela noite e a encheria de energia, coragem e esperança como sempre que se entregava áquela comunhão.
                Caminhando apressadamente, desviando-se de raízes centenárias, a sacerdotisa pensou ouvir algo. Um murmúrio, leve e que crescia a medida que se aproximava do lago, até que tornou-se perfeitamente audível. Era alguém cantando, uma voz tocante, suave, mas cheia de força.
                Chegando enfim aos últimos arbustos da borda da clareira onde ficava o lago, a sacerdotisa avistou ma figura sentada em um velho tronco tombado na margem. Um tremor de reconhecimento percorre-lhe o corpo, pois a figura ali era inconfundível. A guerreira sentava-se com a cabeça inclinada quase com humildade e cantava aquela canção. Era um canto pungente, único. Sua voz era rica em nuances fazendo a sacerdotisa sentir vontade de chorar e trazendo-lhe ao coração uma mescla de felicidade e melancolia. De repente, a sacerdotisa já não sabia se aquela paisagem a sua frente, com a lua imensa refletindo-se no lago calmo e profundo, enchendo o lugar de tons de azul escuro, negro e branco era assim tão maginífica por si só ou apenas porque era preenchida por aquele canto que parecia-lhe primitivo e nostálgico provocando-lhe lembranças que ela nem sabia possuir.
               Sem perceber, entrou na clareira e caminhou até onde a guerreira se encontrava. Viu-lhe a atitude serena. Na face tocada por um raio de luar, uma lágrima descia brilhando. Hipnotizada pelo canto, por aqule quadro de extrema solidão e abandono, a sacerdotisa postou-se ao lado da guerreira sem que, inexplicávelmente para alguém com sentidos tão aguçados, esta notasse sua presença. E levou a mão a seu rosto pronta para enxugar aquela lágrima que maculava a bela face, esquecida toda a aversão que sempre sentira por aquela mulher, a sua violência e a tudo que sempre abominara nela, diante das emoções que agora eram despertadas dentro de si.
               E tudo se transformou num átmo de tempo. A guerreira saltara em pé, espada em punho e com a mão livre já desferia-lhe um tapa brutal. Em pé, cheia de fúria, os olhos secos, sem vestígio algum de lágrimas, cintilavam friamente, mas pela primeira vez, em meio a surpresa e o choque que o tapa provocara-lhe, a sacerdotisa via algo mais naqueles olhos.
              - Agora teremos de nos preocupar com idiotas que saem da segurança do acampamento no meio da noite e desarmados? - rosnou a guerreira, já guardando a espada.
              Ainda em choque, a sacerdotisa deu-se conta de que a aquela mulher tinha razão no que dizia. Fora imprudente e irresponsável afastar-se do acampamento áquela hora e embrenhar-se na mata entre dois exércitos em guerra. Mas jamais diría-lhe isto. Voltou-se ignorando a presença da guerreira e foi pisando duro, lutando contra o choro que formava um nó em sua garganta, o rosto vermelho pelo tapa, que, percebia ela, não doía-lhe tanto quanto doia seu coração, sem contudo, entender o motivo disto.
              Sentiu que a guerreira a seguia e preparou-se para revidar. Mal acreditava que a mulher que vira e ouvira, cantar aquele canto de estranhas palavras que, sabia, brotavam-lhe do espírito, do mais íntimo de si, cheia de sensível e angustiante beleza, fosse a mesma guerreira fria e cruel que acabara de esbofetear-lhe o rosto. Sentiu suas mãos sobre seus ombros, sentiu-se girada e apertada junto ao peito daquela mulher misteriosa e lutou a princípio contra aquilo e, depois, lutar já não fazia sentido algum. A sacerdotisa só conseguia sentir o desespero daquele abraço, a força, a necessidade. O coração da guerreira batendo acelerado fazendo seu próprio coração acelerar, sua respiração descompassada, a fome dos beijos enquanto aquela boca exigente possuia a sua. E então, a ânsia da guerreira amainou como uma furiosa tempestade noturna dos mares do norte acalmava pela manhã, transformando-se em suave brisa...
               Num sussurro ela falou com a voz tristonha: - perdoa-me... - e a sacerdotisa apenas a beijou novamente, sentindo o cuidado com que ela a tocava, delicada, ternamente agora. E a abraçou, na ponta dos pés, uma das mãos entrelaçadas naqueles cabelos compridos e lisos, a outra tocando-lhe o rosto enquanto a guerreira a segurava pela cintura e nuca. Estava entregue, queria estar. E deitaram-se no tapete de folhas secas da floresta, a lua banhando-lhes os corpos perfeitos libertos das roupas, cada sentido desperto, sentiam cheiro, calor, fogo em cada milímetro de pele por onde as bocas corriam em carícias infinitas. A sacerdotisa sentía-se segura naqueles braços, e sentía-se mulher, primitiva, fêmea na totalidade de seu ser. Honrava sua Deusa e sua terra ali, celebrando a Vida com aquela estranha guerreira que ela sabia, amava desde há muito sem nunca ter percebido. E a guerreira sentía-se acolhida, aconchegada, liberta de seus pesadelos de sangue e dor na doçura daqueles beijos, no amor que adivinhava no toque da sacerdotisa, na entrega, nas batidas de seu coração. No amor que via em seus olhos dourados, cor de avelã, presos aos dela.
              E quando tocou no âmago daquela mulher em seus braços, a boca bebendo com deleite daquela fonte, sentiu-se plena, inteira. E quando a sacerdotisa explodiu em gozo sob suas mãos, sob sua língua sedenta, curvando-se e oferecendo-se ainda mais, ela também explodiu sentindo-se voar, feliz, emocionada pela entrega... O mundo não existia além delas, não havia guerra nem exércitos, esquecera sua espada que era extensão de si mesma, esquecera tudo que não fosse aquele amor sem esperança que por tanto tempo tortura-lhe a alma e agora se via correspondido quando ela menos esperara por isso.
            Naquela manhã, quando a sacerdotisa tratara seu ferimento, sentira toda desesperança de nunca tê-la e se resguardara desse sentimento fechando-se numa carranca de frio desdém e raiva. Era assim que fazia sempre que a via. Mas agora ela estava ali, em seus braços, e a amava também. Tentou dizer algo enquanto sentia a calma invadir as duas entre beijos e doces carinhos, mas que a sacerdotisa calou-lhe a voz com mais um beijo apaixonado, cheio de promessas. A guerreira entendeu. Deviam desfrutar daquela magia que as unira. Sentimentos quando explicados perdem a força.
            Elas permaneceram ali até a aurora chegar amando-se com desejo insaciável que só crescia a cada segundo que estavam juntas. Quando voltaram ao acampamento, a guerreira levou suas coisas para a tenda da sacerdotisa. Se alguém chegou a escandalizar-se por isso, não houve comentários. A guerreira era temida por todos e respeitada. E a magia da sacerdotisa também.
             E os dias passaram e agora, todos viam a guerreira e a sacerdotisa, as duas felizes, os olhos frios da guerreira enchendo-se de luz e calor apenas quando contemplava a doce sacerdotisa cavalgando sempre a seu lado. E viam a sacerdotisa angustiada toda vez que sua amada partia para o confronto com o inimigo. Mas a Deusa sempre as protegeu. Quando a guerra teve fim, o rei, vitorioso e grato deu-lhes um generoso presente. E elas partiram em busca de outras aventuras. Os corações cheios de esperança e amor. Essa, contudo, é uma história que contarei em outra ocasião.
               Por ora, vejam apenas a força do amor. Quando mais impossível e improvável, é aí que ele teima em nascer. Sempre forte e impetuoso. Absolutamente imprevisível.




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